Autor: Matheus Cavalheiro - Especial para a Mediação/CNU
Resultado de 10 anos de produção, “Disco Boy”, primeiro longa de ficção do diretor Giacomo Abbruzzese, retrata de seu ponto de vista o conflito entre França, representada pela Legião Estrangeira, e um grupo armado de revolucionários na região do delta do Níger, território explorado principalmente por multinacionais produtoras de petróleo.
Em uma noite de primeiras vezes (primeira visita do diretor ao Brasil, para divulgar seu primeiro longa de ficção), Abbruzzese se declarou feliz ao ver a audiência no cinema, já que o projeto e a execução do filme foram pensados na experiência de som e imagem que não pode ser replicada “em seu computador ou em sua TV de casa”.
A sessão do sábado (17/06) aconteceu às 20h45 e foi apresentada pela Mostra Competitiva Internacional do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, no Cineplex Novo Batel. Teve seus ingressos esgotados e, por estar concorrendo à premiação do festival, cada um dos espectadores recebeu um cupom no qual deveria ser registrada uma nota de 1 a 4.
Na ocasião, o diretor italiano que falou sobre sua produção e suas inspirações. Respondeu, também, perguntas variadas após a exibição. Acompanhado de tradução, antes mesmo de a projeção começar, falou sobre o desafio de rodar um filme internacional com um orçamento limitado e locações de difícil acesso — chegou a perder aproximadamente sete quilos durante as gravações. Abbruzzese discorreu sobre como esses lugares geograficamente distantes se tornam uma viagem internalizada.
Disco Boy conta paralelamente as histórias de Jomo (Morr Ndiaye), guerrilheiro do delta do Níger, e de Aleksei (Franz Rogowski), imigrante bielorusso órfão que, em busca de uma vida melhor, se alista na Legião Estrangeira — grupo do exército que dá, a quem servir por pelo menos cinco anos, a possibilidade de passaporte e nome franceses. A trama se desenvolve com um eventual encontro fatal entre os dois, quando o grupo de Aleksei é encarregado de resgatar reféns capturados pelos revolucionários. As consequências desse encontro são sentidas pelo personagem de Franz Rogowski, que passa a se conectar com Jomo e termina abandonando a Legião.
Em uma atmosfera guiada pela trilha sonora que, segundo o diretor, demorou quatro meses para ficar pronta (Marta Billingsley, Piergiorgio De Luca, Simon Apostolou são creditados pelo som), sincronizada a imagens de expressividade incontestável fotografadas por Hélène Louvart (de a Vida Invisível e Lazzaro Felice), o ritmo do filme é um de seus pontos altos e culmina em duas cenas catárticas bem coreografadas que fazem referência ao sagrado — o ritual religioso de Jomo, após a primeira apresentação dos personagens, e sua reencenação ao fim da narrativa por Aleksei, em um clube de dança que haveria sido, anteriormente, uma igreja.
É por meio desse ambiente sensorial construído no filme que é levantada a ideia de se estar no lugar do outro. Perspectiva retratada não somente de um dos lados do conflito, mas de ambos, condição rara em narrativas de guerra. Jomo, em determinado momento, é perguntado pelo seu irmão como ele acha que seria se tivesse nascido branco, enquanto Aleksei questiona as ordens da instituição que serve por ter desenvolvido empatia pelos guerrilheiros. É nessa questão em que o filme deixa de retratar somente situações locais — a exploração colonial da África e a crise migratória na Europa — e se consolida para uma audiência internacional, que pode ser levada a refletir independentemente do contexto geográfico estabelecido pela obra.
Apesar disso, o filme parece levantar polêmica quando retrata os povos africanos, uma vez que sua representação pode soar, para alguns, problemática — acaba não tratando ou explicando os rituais com profundidade, e muitas vezes os corpos pretos podem acabar adquirindo função fortemente estética. Perguntado sobre isso, o diretor respondeu que procurou pesquisar e respeitar a cultura local, atuando em parceria com uma coreógrafa nativa da região. Além disso, a redenção do homem branco, independentemente de suas ações questionáveis, pode não fazer uma crítica clara às instituições colonizadoras representadas por ele. Entretanto, tudo acaba passando pelas escolhas estéticas da equipe responsável pelo filme, que priorizou mostrar informações de maneira plástica ao invés de entregar críticas já digeridas ao espectador. É inevitável também que, por seu um diretor europeu, a perspectiva europeia acabe sendo de alguma maneira predominante, por mais cuidado que se tome.
Giacomo Abbruzzese nasceu na região da Puglia, na Itália, mas consolidou seus estudos na França. Disse que a ideia de fazer um filme como esse veio originalmente de ter conhecido um dançarino que já havia servido como soldado, o que o fez reparar nas coincidências, no senso de coreografia, disciplina e esforço físico que ambas as funções exigem. Como estrangeiro na França, também disse sentir falta de obras ficcionais que representassem a Legião Estrangeira.
Relatou à audiência que, desde o início, a ideia de criar uma relação de empatia e conexão com o outro na guerra foi um dificultador para o financiamento do filme, assim como a escolha de um elenco que, à época, não parecia uma boa escolha por serem atores muito novos ou ainda desconhecidos do mercado. Abbruzzese, entretanto, defendeu a escolha do elenco que “independentemente de seus passaportes” teriam a alma dos personagens. Hoje ele avalia que manter suas decisões, mesmo tendo lhe custado a troca de produtores, valeu a pena pelo resultado final da obra (Franz Rogowski é hoje considerado um expoente do cinema alemão). Outra dificuldade de produção foram as locações de rodagem, que precisaram ser adaptadas por uma questão de segurança e financiamento.
A sessão de conversa com Abbruzzese se estendeu até cerca de 23h45 e se encerrou com o diretor posando para fotos e conversando individualmente com alguns espectadores.
Commentaires