Num lugar onde tudo é mediado pela imaginação e pelo desejo, a transgressão arranha a superfície do real.
Créditos do Fotógrafo: Divulgação
Quando a fantasia se permite virar realidade? Num lugar onde tudo é mediado pela imaginação e pelo desejo, a transgressão arranha a superfície do real. Ganha forma em corpos trasvestidos, em vozes afinadas e atuações propositadamente exageradas, mas a ela jamais é permitido o passo além da ilusão que circunda o casarão interiorano e o tempo de um fim de semana. Lá, militares e oficiais da ditadura trocam a farda pelo espartilho, o quepe pela peruca, botina pelo salto-alto. Em Casa Izabel, local e filme, “tudo é sobre fantasia”.
O filme de Gil Baroni abriu a 12ª edição do Olhar de Cinema. A escolha foi um achado: além de curitibano, o longa-metragem trata de temas caros à personalidade do festival. A primeira impressão exibida ao público prestigia o cinema local e indica pontos-chave do que a audiência pode aguardar dos 87 filmes selecionados. Os conflitos de gênero, a marginalidade, as repressões sociais, a iconoclastia, até mesmo as disformias corporais que remetem à mostra dedicada ao canadense David Cronenberg: tudo está em Casa Izabel.
O ano é 1970. O Brasil vive o período mais sangrento do autoritarismo militar. No interior do Paraná, uma casa-grande erguida em tempos escravocratas abriga meia-dúzia de homens que dão vazão a desejos sufocados em meio a bebedeiras e atividades comuns do dia a dia. As regras da casa são simples. Todos viram todas, adotam nomes femininos e personalidades imaginárias, não discutem assuntos do mundo “real” e para além do portão. Não é permitido o porte de armas, bem como são proibidas manifestações sexuais nos ambientes compartilhados. É com a quebra de parte dessas regras que os ânimos entre as personagens são levados ao extremo, vertidos em fogo e chumbo.
A visão do cotidiano e dos embates das crossdressers é um dos trunfos do filme. Tratando do imaginário, mas sem dispor de recursos oníricos, a realidade e as encenações do absurdo são exibidas por uma ótica de concretude que transforma as interações em elementos trágicos e patéticos, sem abrir mão do humor. Tais dispositivos criam diferentes dimensões entre os corpos surrados e as mentes torturadas daqueles homens. É com pesar nos olhos, mas com leveza na fala, que uma delas devaneia sobre como ajudou Marlon Brando a conquistar seu primeiro Oscar. Outra, novata e acanhada ao refúgio, explica como é ser a primeira-dama do Brasil.
Encarnando essas figuras dúbias, o elenco é liderado pelo sempre arrasador Luís Melo (O Auto da Compadecida). Mesmo com pouco tempo de tela, sua presença em determinadas cenas é o suficiente para construir diferentes camadas dramáticas que permeiam o lugar e as relações entre as personagens. Sua adoecida travesti é a Izabel que nomeia a propriedade, mas que há anos não a vê fora de um isolado quarto nos fundos da casa. O grupo de atores foi premiado na última edição do Cine PE, tanto na categoria conjunta quanto na de ator coadjuvante, que consagrou o elenco masculino como um todo. Os prêmios se somaram aos de melhor longa-metragem, melhor trilha sonora e melhor direção de arte do festival pernambucano.
Se por um lado esse ponto de vista exterior aos dramas pessoais de cada uma delas intensifica suas relações interpessoais, por outro relega dramas superficiais às personagens, ausentes de profundidade. Alguns pontos de virada no roteiro de Luiz Bertazzo (também roteirista do filme anterior de Baroni, Alice Júnior) verbalizam em demasia as situações do filme, ao mesmo passo em que deixa de lado a resolução de boa parte delas. O desaparecimento de Gabriel, a investigação do governo sobre ele, o iminente surgimento do pai, a relação dos militares com a família… Nada disso é concluído na tentativa de catarse final do filme.
Mesmo os ecos de discursos públicos e de gritos dos porões da ditadura perdem força com explicações óbvias, mas não necessariamente resolutas, ao longo da produção. É um alívio congruente, no entanto, que o poder do filme esteja na fisicalidade de corpos e espaços, sempre estreitados nos limites da razão de aspecto 4:3. Afinal, se não pela manifestação física, como a fantasia viraria realidade?
Autor: Arthur Salles – Assistente de Comunicação Acadêmica
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