Muro do Morro da Providência que faz da Galeria de Arte a céu aberto
(Foto: Patrícia Gaudêncio)
As favelas retratam nas grandes cidades a má distribuição de renda e a dificuldade do poder/público em criar políticas habitacionais efetivas para a demanda da população. E enquanto, ao longo dos anos, as favelas foram rotuladas como um problema a ser combatido, elas nunca deixaram de crescer e configuram-se como solução para a população mais carente. Para boa
parte dos moradores das favelas, sobreviver somente é possível graças ao trabalho de coletivos formados internamente.
Foi nesse cenário que D. Zilda Chaves percebeu, ainda jovem, que para entender o grupo social em que vivia, deveria reconhecer o processo histórico de formação desse grupo. Moradora do Complexo do Alemão, que abriga o maior conjunto de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, ela sentiu que precisava fazer algo a mais para mudar a própria realidade e a de seus irmãos na luta contra a pobreza e a opressão.
Dona de casa e mãe de dois filhos, ela quis estudar a respeito dos direitos humanos e em 2013 conheceu o trabalho do coletivo Ocupa Alemão. Nesse período, interessou-se pela leitura e buscou a história de seu povo. “Era o que eu precisava juntar à minha experiência de vida. Através dos livros, pude ir montando as peças desse quebra-cabeça”, conta D. Zilda, que reconhece a educação como o caminho para a transformação social.
O mesmo incômodo com a realidade local motivou ações em outro ponto da capital fluminense. No Morro da Providência, a primeira favela da cidade, dois moradores buscaram formas de mostrar a favela pelo olhar dos próprios moradores, uma forma de fugir dos estigmas.
Em 2016, Cosme Felippsen juntou-se a outros ativistas e para promover um tour histórico, o Rolé dos Favelados. Através de um guiamento amplo, o programa demonstra que “Para muito além do que os noticiários divulgam a respeito da favela, nela se produz cultura e resistência”, explica Cosme, que atua como guia na região desde criança. O Rolé apresenta a favela pelo olhar do favelado.
E nesse caminho é possível prestigiar um outro exemplo de projeto que nasceu na comunidade, por inciativa de Hugo Oliveira, o Galeria Providência, uma galeria de artes a céu aberto no qual os jovens moradores da região expõem suas próprias artes nos muros da comunidade.
Ação de voluntários do SOS Providência e Região Portuária, com a liderança de Hugo Oliveira
(Foto: Douglas Dobby)
Hugo, Cosme e D.Zilda são exemplos de lideranças que cresceram na favela e reconhecem a importância do trabalho pelo coletivo. Seus projetos objetivam mitigar o impacto do descaso do poder público na vida das comunidades. Com a chegada da pandemia de COVID-19 no Brasil, no início de 2020, eles se depararam com um desafio ainda maior. Em conjunto com outros ativistas sentiram que o que estava por vir poderia ser devastador para os moradores
da favela, onde predomina a desinformação e a falta de políticas públicas.
A essa altura, D. Zilda tocava o projeto da Escola Quilombista Dandara de Palmares, que nasceu em 2017, com o objetivo de promover reforço escolar para crianças e jovens do Complexo do Alemão. Com a ajuda de voluntários, o projeto cresceu e se tornou um espaço para formação sociocultural, oferecendo aulas de música, inglês, capoeira, entre outras atividades. Como descreve Adriana Oliveira, 34 anos, assistida pelo projeto e hoje graduanda de Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, “D. Zilda é a grande griô* da
comunidade, pois preserva e transmite a história do povo preto e cuida de todos”. Com o avanço da pandemia, a escola, que até então atendia 25 crianças, passou a dar assistência também a outras familias locais. Em pouco tempo, já eram mais de 300 famílias cadastradas. O coletivo realizou eventos on-line para angariar recursos e garantir apoio a essa população.
Atividade realizada com alunos da Escola Quilombista Dandara de Palmares em 2019
(Foto: Divulgação do Projeto)
Enquanto isso, na Região Portuária, foi criado o SOS Providência e Região Portuária, com a atuação, de Cosme, Hugo e outros coordenadores. O grupo desenvolveu um programa para mapear toda a comunidade, identificando as necessidades das famílias. Assim, foi possível registrar o quantitativo de moradores com sintomas de COVID-19, quem precisava de atendimento médico e assistência funenária, o número de óbitos na região, entre outros levantamentos. Hoje, já são mais de 800 famílias cadastradas. O programa inclui demandas
como distribuição de cestas básicas, gás, kit higiene, direcionamento para o mercado de trabalho e atendimento psicológico. “Quando a pandemia começou, eu perdi o emprego. Moro nessa região há 22 anos e sei o quanto o trabalho que o SOS faz é essencial. Minha família faz tratamento psicoterapêutico graças à atuação do coletivo”, relata Helena Ferraz, chefe de cozinha, viúva e mãe de 3 filhos.
E o trabalho continua. “A maior lição que fica é que, para sobrevivermos, precisamos aprender a viver pelo coletivo”, enfatiza D. Zilda. Os projetos repercurtiram nas redes sociais, chamando a atenção de empresas privadas e instituições, e conquistaram parcerias. É um trabalho, como classifica Hugo, doutorando em Comunicação Social, de “nós por nós”, para garantir a esse
povo mais fôlego de vida. Ele reconhece que “Tudo isso foi possível porque já havia uma confiança entre as partes. A população quer ser acolhida. Às vezes um “bom dia”, um “boa tarde”, um “pra onde você vai?”, pode parecer ordinário, mas é o que mantém nossa saúde mental diante de tamanha vulnerabilidade”, conclui.
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